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Perla Ribeiro
Agência Einstein
Publicado em 5 de junho de 2025 às 12:29
Quem vive em guerra com a balança sabe: qualquer promessa de emagrecimento fácil enche os olhos. Agora, uma novidade aumenta a expectativa de perder peso com pouco esforço, mas com alto custo financeiro. Após meses de expectativa, a tirzepatida começou a ser comercializada no país em maio, com o nome comercial Mounjaro. Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2023 para o tratamento de diabetes, o remédio só agora chegou efetivamente às farmácias, em meio a uma demanda aquecida e a um debate crescente sobre quem vai, de fato, se beneficiar da nova promessa da medicina metabólica. >
Fabricado pela farmacêutica estadunidense Eli Lilly, o fármaco é apontado como o mais potente no arsenal contra a obesidade e o diabetes tipo 2. O entusiasmo não vem do nada. Ele representa a nova geração dos chamados análogos do hormônio GLP-1, classe de medicamentos originalmente criada para tratar o diabetes tipo 2 que vem revolucionando a forma como a medicina aborda a obesidade. Ao combinar a ação do GLP-1 com a do GIP — outro hormônio intestinal envolvido na regulação do apetite e da glicemia —, a tirzepatida atua em mais frentes do metabolismo e, segundo estudos, leva a perdas de peso superiores a 20% em adultos com obesidade. >
É mais do que o já expressivo resultado obtido com a semaglutida, princípio ativo do Ozempic e do Wegovy, cuja média fica entre 13% e 15%. “A gente acredita realmente que esses medicamentos vão ser o futuro do tratamento da obesidade, do diabetes e de várias outras doenças”, afirma o especialista em obesidade do Hospital Israelita Albert Einstein, o endocrinologista Paulo Rosenbaum. “Há esperança de que isso possa mudar a vida de muita gente e que, com o tempo, eles possam ficar mais íveis e beneficiar uma população maior”.>
Mas, se os efeitos impressionam, os custos — financeiros, sociais e biológicos — ainda estão em aberto. Enquanto isso, pacientes, médicos e autoridades tentam equilibrar o potencial terapêutico com os riscos conhecidos e os limites da prescrição responsável, numa corrida em que o peso perdido pode não ser o único impacto a ser medido.>
Como funcionam os análogos de GLP-1>
Os medicamentos que hoje lideram a revolução no tratamento da obesidade e do diabetes nasceram da descoberta do papel dos hormônios intestinais no controle do apetite e da glicemia. Um dos principais é o GLP-1 (glucagon-like peptide-1), produzido em resposta à ingestão de alimentos. Ele estimula a secreção de insulina, inibe o glucagon (hormônio produzido pelo pâncreas que tem a função de aumentar os níveis de glicose no sangue) e retarda o esvaziamento gástrico, prolongando a saciedade.>
O primeiro análogo sintético do GLP-1, a exenatida, chegou ao mercado no início dos anos 2000. Desde então, as moléculas evoluíram em potência e praticidade. A liraglutida, de uso diário, oferecia resultados mais consistentes; depois vieram os compostos de aplicação semanal, como a dulaglutida e a semaglutida — essa última já indicada também para perda de peso. “A gente viu uma evolução em termos de facilidade posológica e na perda de peso causada por medicações”, relata a endocrinologista Maria Edna de Melo, médica assistente do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).>
A eficácia ganhou projeção mundial após a publicação do estudo STEP 1, no New England Journal of Medicine, em 2021. O ensaio mostrou que adultos com obesidade perderam, em média, 14,9% do peso corporal com semaglutida semanal — mais que o dobro dos resultados de intervenções anteriores.>
Mas o impacto clínico vai além da balança. Segundo Melo, a perda de peso funciona como um ponto de inflexão, porque costuma desencadear o controle de outras condições. “Alguns estudos mostram que a semaglutida tem relação com a redução do risco cardiovascular”, afirma. A partir de março de 2024, essa indicação ou a constar na bula da semaglutida injetável de 2,4 mg (Wegovy), aprovada pela Food and Drug istration (FDA), agência que regula e aprova medicamentos, vacinas e alimentos nos EUA, para reduzir eventos cardiovasculares em pessoas com obesidade e histórico de doença cardíaca — mesmo sem diagnóstico de diabetes.>
Outros órgãos e sistemas também parecem se beneficiar do uso contínuo dessas medicações. Em estudos clínicos e observacionais, foram notadas melhorias em casos de apneia do sono, esteatose hepática (acúmulo de gordura no fígado) e até osteoartrite (doença crônica que causa o desgaste da cartilagem das articulações).>
Há ainda pesquisas em andamento sobre os efeitos na saúde mental. Um estudo publicado em abril no JAMA Neurology associou o uso de agonistas do receptor de GLP-1 a uma redução significativa no risco de demência e comprometimento cognitivo, em comparação com outros tratamentos para diabetes tipo 2. Os efeitos neuroprotetores estão sendo testados também em quadros de Parkinson, dependência química e depressão resistente.>
Prevenção oncológica>
Um dos estudos mais recentes, apresentado no Encontro Anual de 2025 da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO, na sigla em inglês), acompanhou mais de 170 mil adultos com obesidade e diabetes nos Estados Unidos. Os dados mostram que o uso dos análogos esteve associado a um risco 7% menor de desenvolver cânceres ligados à obesidade — entre eles, os de cólon, fígado, estômago, mama e endométrio — em comparação com pacientes tratados com inibidores de DPP-4, outra classe de antidiabéticos. Embora sem comprovação de causalidade, os autores consideraram os achados “reconfortantes” e apontam que essas moléculas podem, no futuro, ter papel também na prevenção oncológica.>
“A medicina tem recebido essas descobertas com entusiasmo, mas também com cautela”, pontua o endocrinologista Carlos André Minanni, do Einstein. “É importante lembrar que todo novo uso precisa ser bem estudado para garantir segurança e eficácia. O lado positivo é que estamos entrando em uma nova fase de tratamentos mais integrados, que cuidam do corpo como um todo — e esses medicamentos fazem parte dessa revolução.”>
Efeitos colaterais >
Apesar dos avanços com os medicamentos à base de GLP-1, ainda existem algumas lacunas importantes que a ciência está buscando esclarecer. A maior parte dos pacientes tolera bem os análogos de GLP-1, mas os medicamentos não estão isentos de riscos. >
A bula aponta efeitos gastrointestinais como náusea, diarreia, vômito e constipação — relatados por até 18% dos usuários de tirzepatida e 24% dos que usam semaglutida. “Esses sintomas geralmente aparecem no início do tratamento e tendem a melhorar com o tempo, mas em algumas pessoas podem ser mais intensos. Por isso, o acompanhamento médico é fundamental para ajustar a dose e avaliar a tolerância”, explica Minanni. >
Os efeitos no longo prazo também são desconhecidos. “Ainda não temos dados suficientes sobre o que acontece com o corpo após muitos anos de uso contínuo. Queremos entender melhor se os benefícios continuam se mantendo e se há riscos que só aparecem com o tempo”, diz. A segurança em populações específicas, como gestantes, crianças e idosos muito frágeis, é outra preocupação. “Isso limita nossa capacidade de recomendar o tratamento com segurança nesses casos”, completa Carlos Minanni.>
Outro risco observado em estudos iniciais com semaglutida é a piora de casos já existentes de retinopatia diabética, especialmente em pacientes com diabetes. “O remédio melhora a glicemia muito rápido, e isso pode descompensar o quadro. Por isso é tão importante fazer o escalonamento da dose de forma gradual”, explica a endocrinologista do HC-USP.>
Também preocupa a perda de massa muscular. Estudos indicam que entre 20% e 40% do peso perdido com GLP-1 pode vir de tecido magro, especialmente em indivíduos que não associam o tratamento à ingestão adequada de proteína e a exercícios de resistência. “Pacientes que perdem muito peso podem perder massa magra e até desenvolver osteoporose. Em idosos e pessoas frágeis, é essencial combinar o uso com musculação”, orienta Rosenbaum. Em pacientes com obesidade e diabetes, esses medicamentos podem elevar o risco de pancreatite, inflamação do pâncreas que causa dor abdominal intensa e pode comprometer a digestão.>
O maior alerta, no entanto, pode estar fora da bula: o uso sem indicação formal por pessoas que buscam emagrecer por estética, sem obesidade ou comorbidades. “As pessoas confundem o tratamento da obesidade com perder dois quilos. Isso estigmatiza o tratamento e atrapalha quem realmente precisa. Vira um problema mais social do que médico”, afirma Melo.>
Em abril, a Anvisa anunciou que aria a exigir retenção de receita para fármacos à base de semaglutida e tirzepatida, e estabeleceu um prazo de 90 dias para a validade da prescrição, numa tentativa de coibir a automedicação e o aumento indevido de dose — fator que eleva o risco de reações adversas. A medida deve entrar em vigor no dia 23 de junho. “Quando o paciente compra sozinho, às vezes já aplica uma dose que só deveria ser usada daqui a três meses. E isso aumenta o risco de efeitos colaterais mais fortes”, alerta a médica da USP.>
Regulação, SUS e o>
Apesar das exigências da Anvisa para controlar o uso indevido dos medicamentos, o principal obstáculo continua sendo o preço. Dependendo da dosagem, uma caixa de Mounjaro pode custar até R$ 4058,86, de acordo com a lista de preço máximo ao consumidor da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Já Ozempic e Wegovy não saem por menos de R$ 1065,75. Isso mantém o tratamento fora do alcance da maior parte dos brasileiros. >
“Quando falamos desses medicamentos, falamos só de gente rica para gente rica. Ainda mais pensando no uso crônico, afinal, 70% da população vive com dois salários mínimos. Então é um assunto bem elitista”, opina Maria Edna de Melo. “Isso cria desigualdades no tratamento da obesidade e do diabetes, que são problemas de saúde pública”, concorda Minanni.>
Enquanto o remédio chega ao varejo, o debate sobre sua inclusão no Sistema Único de Saúde (SUS) segue travado. Em maio de 2024, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) analisou dois pedidos: um da Novo Nordisk, fabricante do Ozempic, para incorporação da semaglutida a pacientes com obesidade e risco cardiovascular; e outro da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), com apoio da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), pedindo a inclusão da liraglutida.>
Ambos foram negados. Segundo a avaliação técnica, divulgada em consulta pública, o principal entrave foi o impacto orçamentário. Mesmo com propostas que limitavam o uso a casos graves, a estimativa de custo supera R$ 10 bilhões por ano. Melo, que participou diretamente do processo relacionado à liraglutida, critica os critérios da análise. “A solicitação era para pacientes em situação extrema. Mas retiraram a doença cardiovascular do cálculo e fizeram a conta com base apenas em obesidade e diabetes, o que inflaciona o número de possíveis usuários”, aponta. Na prática, a decisão manteve o tratamento da obesidade fora do SUS, mesmo nos casos graves e com risco elevado de complicações.>