Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Luiza Gonçalves
Publicado em 12 de junho de 2025 às 05:00
Quando a autora brasiliense tatiana nascimento, 44, ganhou o primeiro Prêmio Pallas de Literatura em 2025, um alívio cruzou sua mente: finalmente poderia, depois de 10 anos escrevendo e três outros buscando editoras, publicar seu primeiro romance ‘água de maré’. “significou que essa história ia sair das gavetas digitais dos arquivos de computador […] deu a esse livro a chance de circular e ser lido por um público maior e diferente daquele que acompanha minha trajetória, ao mesmo tempo em que insere no catálogo da editora, que já publica referências na autoria negra sexual dissidente, como Cidinha da Silva, mais uma obra que comprova a seiva da literatura negra brasileira como uma complexa, diversa”, afirma. >
Sua estreia em romance apresenta a história de duas irmãs, Antonia e Nereci, que transitam entre prisão e liberdade, caos e calma, em um enredo marcado por ancestralidade, afeto e resistência. Inspirada nas epistemologias iorubás e com linguagem poética, a narrativa se recusa a seguir normas, traçando um percurso de corpos negros, entre dores e possibilidades. A escrita, toda em caixa baixa, evoca a poesia e o sonho, enquanto acompanha as protagonistas que, mesmo diferentes, compartilham mares de ausências e pertencimentos. No cotidiano, a escritora explica que prefere permanecer com a subversão da linguagem e beleza da escrita caixa baixa, como você, leitor, deve ter reparado até aqui.>
“água de maré conta uma história de amor, de amores: amor de mãe, amor de irmã, amor de filha, amor de vó, amor de amante, amor sapatão, amor preto. amor de Orixá. talvez conte uma história sobre as várias formas que o amor preto pode tomar, e também talvez diga da ancestria desse amor que faz de tudo pra seguir, fluir, jorrar, alimentar nossos caminhos”, define nascimento. A obra se a em uma Salvador reinventada, inspirada na nostalgia da autora de momentos que ou na capital baiana e em homenagem à cidade:>
“o livro se a na salvador da minha saudade. salvador é onde muitas coisas aconteceram pra mim pela primeira vez: em salvador entendi que o racismo colonial é uma pedagogia que tenta, primeiro, nos envenenar contra nós. mas foi também em salvador que me apaixonei por uma sapatona preta e fui correspondida; foi onde fiz meu primeiro show num teatro; onde comi abará na esquina; e foi em salvador que ouvi Baba Egun alafiando minha fé nos caminhos que a vida ia me apresentar. espero que o livro faça alguma justiça a essa grande pretópolis”.>
Apaixonada pela literatura desde a infância, muito por influência de sua mãe, que é bibliotecária, nascimento cresceu imersa em livros e escrita desde que se entende por gente. “tive muito o a livros, o que, no modo de introversão que vivo, foi um alívio, uma companhia, uma possibilidade de aprender a imaginar, sonhar e conhecer tantas outras realidades. irrealidades também”, relembra. Cantora e escritora de mais de 15 títulos publicados, em sua maior parte poesia, atribui o salto de tornar-se autora ao entrar em contato com o CD ’Eu te amo e suas estréias’, de Elisa Lucinda, que a inspirou a buscar sua própria voz poética, e com a escritora Luz Ribeiro, que a fez ter vontade de ter seus livros publicados.>
Maturando possibilidades>
Durante a década que ‘água de maré’ foi escrito, seu caminhar desenrolou de uma ideia inicial, para um conto, depois um roteiro e, por fim, um romance, de modo a “dar mais caminho, mais história praquelas personagens que em algum momento da minha vida ficavam me povoando muito a cabeça”, relembra nascimento. A época foi marcada por um processo que atravessou o olhar da autora não só em sua escrita, mas em todas as suas vivências desde então: entender-se como uma pessoa não-binária. “a não binariedade me fez reentender muito de todo meu estar no mundo, me fez prestar mais atenção pras experiências negras que definiam faz muito tempo as delimitações tão estreitas de gênero que o racismo colonial nos impõe [...]. e isso vai dando vida também à movimentação das personagens na trama”, partilha.>
Parte importante das reflexões em água de maré gira em torno das lesbianidades que rompem com expectativas normativas de gênero, em diálogo direto com autoras como Monique Wittig e Audre Lorde, que, segundo nascimento, “me ajudaram e ainda ajudam plantando as primeiras sementes do que eu viria a entender depois como gênero neutro”. A partir dessas referências, a autora constrói personagens que atravessam fronteiras identitárias e afetivas ao longo da narrativa: “as personagens são duas pessoas que começam como sapatonas desde crianças mas vão se entender além da sapatonice conforme crescem: Nereci caminha pra não binariedade, Toni pra transgeneridade”.>
Livro: água de maré>
Autoria: tatiana nascimento >
Ano de publicação: 2025>
Número de páginas: 192>
Editora: PALLAS>
Valor: R$ 55>